Migração e Refúgio, contribuições da Psicologia

Mariana Bassoi Duarte da Silva¹
Maria Virginia Filomena Cremasco²

Migração e Refúgio, contribuições da Psicologia

Movimento e migração são as condições de definição histórica da humanidade. Porém, o mundo vive hoje uma realidade no mínimo intrigante a qual nos deve levar a reflexões com responsabilidade.

Objetivamos contribuir para uma reflexão sobre este fenômeno migratório e desafios atuais sob a perspectiva do campo da psicologia.

De acordo com o CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados (2014), o Brasil possui refugiados reconhecidos, de 81 nacionalidades distintas. Segundo o ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (2014), referentes ao período entre janeiro de 2010 e outubro de 2014, a análise estatística demonstra o fortalecimento continuado da proteção aos refugiados e solicitantes de refúgio no Brasil. O número total de pedidos de refúgio aumentou mais de 930% entre 2010 e 2013. A maioria dos solicitantes de refúgio vem da África, Ásia (inclusive Oriente Médio) e América do Sul. Nos últimos anos, todas as importantes crises humanitárias impactaram diretamente os mecanismos de refúgio no Brasil, com expressivos números de solicitantes da Síria, Líbano e República Democrática do Congo chegando ao país. Esses dados não incluem informações relacionadas aos nacionais do Haiti, já que estes têm vistos emitidos de residência permanente por razões humanitárias.

O Paraná tem sido alvo de migrantes na busca de oportunidades para recomeçar a vida, na procura por melhores empregos, estudos ou até mesmo acolhimento por parte dos grupos étnicos que aqui se encontram. Um desafio enquanto Estado e sociedade civil. Questões como empregabilidade, saúde pública e educação são pontos importantes de discussão neste momento de acolhimento. A COMIGRAR (2014) - Conferência de Migrações e Refúgio - teve como objetivo a promoção de um diálogo social ampliado para subsidiar a construção da Política Nacional sobre Migrações e Refúgio pautada nos direitos humanos. Há uma necessidade iminente de transformações sociais e políticas atuais de migração, porém além do coletivo, se faz necessário também um olhar significativo para este sujeito, para o indivíduo em condição de estrangeiro. O tema do sofrimento psíquico do sujeito na experiência migratória é abrangente e se percebe a grande necessidade de estudos e propostas de intervenção sobre tal questão.

Estrangeiros que vivem em contexto transcultural, frequentemente experimentam muita tensão. Não é uma tarefa fácil aprender uma nova língua, uma nova cultura e um novo conjunto de regras verbais e não verbais. Estão expostos a experimentar de maneira positiva e/ou negativa o choque cultural causado pelo stress múltiplo: intelectual, emocional e fisiológico, pois pode comprometer sua capacidade de bom funcionamento quando são incapazes de interpretar sinais de um ambiente novo e incerto. Um fator importante a ser considerado, é o processo de elaboração das perdas inerente à experiência migratória, vinculada à história de cada indivíduo.

Um indivíduo que migra entrará em contato com uma nova cultura e precisa abrir mão de tudo que lhe é conhecido e mergulhar em um mundo que requer novas representações e novos significados. Isso significa vivenciar uma experiência de desamparo na qual a não compreensão cultural afeta o bem estar psicológico e dificulta a sua adaptação. Um migrante em estado de privação, com a perda prolongada de referenciais próprios, sofre e vivencia uma crise. Toda crise implica em ruptura ou separação, mesmo que apenas como realidade psíquica. São períodos de transição que representam para o indivíduo tanto uma oportunidade de crescimento como um perigo de aumento da vulnerabilidade e enfermidade psíquicas.

Mudar de país, significa, entre outras coisas, construir uma nova vida, fazer novas representações e dar significados diferentes ao que era familiar se deparando com inúmeras perdas como a de pertencer a um grupo que lhe dá identidade e reconhecimento. A diferença cultural nos confronta com a ruptura de tudo aquilo que em si e na cultura, corresponde à manutenção da relação de unidade (Käes, 2005). A perda do sentimento de pertencimento pode gerar grande ansiedade devido a necessidade que todo indivíduo apresenta, de sentimento de segurança, proteção e de orientação.

O estrangeiro é também, aquele que situará na fronteira, o fora do dentro no grupo o qual o recebe. Segundo Hassoun (1998) sua existência permite a ilusão do grupo se fechar em um reconfortante entre-nós. O estrangeiro, é o diferente para quem o recebe, coloca em questão a unidade para o grupo que o acolhe, ao mesmo tempo que sua presença fortalece a identificação deste grupo.

Segundo Souza (1998) o estrangeiro personifica para o grupo, esse outro. Outro que se afirma em muitos sentidos: outro país, outro lugar, outro costume, outra língua, outro modo de estar, que não faz parte, o que é de outra parte, enigmático. Este estranhamento, a incompreensão do modo diferente de existir que não a do grupo e do padrão estabelecido, é muito dificil de ser elaborada pelo estrangeiro, que pode vir a sofrer com tamanha rejeição e solidão, já que se encontra desamparado. Por outro lado, pode despertar no grupo que o acolhe, forte sentimento de raiva e rejeição.

Denúncias frequentes por parte dos migrantes africanos, são os casos de racismo e xenofobia enfrentado por estes, questão que tem se intensificado e que passa a ser uma preocupação, bem como a marginalização dos migrantes que, ao se depararem com as dificuldades, agravadas pela vulnerabilidade social, terminam por sofrer com a manipulação e controle, por parte da sociedade.

A imposição de uma política globalizante, apoiada no consumo, no individualismo, opera de modo a impedir as divergências, o estranhamento, o novo, gerando no sujeito impotência, alienação de si e de valores que lhe sejam singulares, forçando-o a uma dura batalha para se afirmar, correndo o risco da marginalização. Muitos migrantes se deparam com situações de extrema vulnerabilidade social e se sujeitam a condições precárias de vida, subempregos ou até mesmo, regimes de escravidão como se têm denúncias: Consequências de questões financeiras ou até mesmo por desconhecimento e dificuldades encontradas na burocracia e apoio legal. Estando em situação de risco social e vulnerabilidade psíquica, muitas vezes ainda, sem direitos e oportunidades devido questões burocráticas, o estrangeiro se vê à mercê de explorações e marginalização.

Assim, o sofrimento do migrante está vinculado à desestabilização de prévias certezas, ameaçando a identidade em seu próprio fundamento. O migrante em sua entrangeiridade é inclassificável, sem lugar, nem cidadão nem estrangeiro, se situa na fronteira entre o ser e o não ser. Não faz parte do grupo atual, porém já não pertence ao lugar de onde saiu, se separou deste outro que o constituiu e significou. Em muitos casos, favorecendo a formação de guetos, fomentando a dificuldade de fazer parte desta cultura outra.

A migração é uma das muitas experiências na vida que trará um sofrimento psíquico àquele que a vivencia, a priori o desamparo e o luto são inerente a esse fenômeno. A migração, então, é uma das contingências da vida que expõe o indivíduo a passar por estados de desorganização interior. Apontamos a necessidade de estudarmos a migração como um processo de cada sujeito, com sua experiência e bagagem individual. A psicologia tem muito a contribuir por se apropriar da singularidade e por oferecer uma escuta ao seu sofrimento. Um desafio iminente com a realidade e conjecturas atuais.

Com os dados apresentados da realidade brasileira no contexto internacional e as possibilidades as quais se encontra o Paraná, deparamo-nos com um desafio para diferentes campos da psicologia, desde a clínica ao fenômeno social. Necessidades relacionadas à educação, empregabilidade e saúde são apenas algumas das importantes áreas de atuação que a psicologia pode contribuir. Reflexões sobre a atuação da psicologia em como colaborar com esta questão atual é de fundamental importância. As demandas são muitas e ainda pouco se tem efetivado enquanto projetos e intervenções no campo da psicologia em nosso estado.

Algumas iniciativas de acolhimento, integração e apoio aos migrantes em Curitiba já contam com a colaboração da psicologia, como o Laboratório de Psicopatologia da UFPR, Programa Política Migratória e Universidade Brasileira, da UFPR, a Casa Latino Americana – Casla e o Centro de Referência em Direitos Humanos Dom Hélder Câmara - Cáritas. Enquanto atuando efetivamente nesses projetos, diversos profissionais vêm elaborando teoricamente sobre essa questão, extremamente importante e que nos lança constantes desafios.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

• COMIGRAR, disponível em <http://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2014/ 06/03-comigrar-reune-788-pessoas-para-discutir-politica-nacional-de-migracoes-e-refugio.html > site acessado em 30 de março de 2015.
• ACNUR, disponível em <http://www.acnur.org/t3/portugues/recursos/estatisticas/ dados-sobre-refugio-no-brasil/> site acessado em 30 de março de 2015.
• KÄES, R. Différence Culturelle et Souffrances de l’identité. Paris: Dunod, 2005.
• HASSOUN, J. O estrangeiro: um homem distinto. In: KOLTAI, C. O Estrangeiro. São Paulo: Escuta, 1998. p. 83-104.
• SOUZA, N.S. O estrangeiro: nossa condição. In:KOLTAI, C. O Estrangeiro. Sao Paulo: Escuta, p. 155-163. 1998.



¹Psicóloga formada em 2004 pela PUC-PR, Pós Graduada em 2005 pela PUC-PR. Aluna bolsista CAPES do Mestrado em Psicologia Clínica pela UFPR, pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicopatologia Fundamental da UFPR. Colaboradora do Programa Política Migratória e Universidade Brasileira - UFPR. Professora de Psicologia da FACEL. Colaboradora da Comissão de Direitos Humanos CRP-PR.

²Psicanalista, Doutora em Saúde Mental (Unicamp/2002), Pós-doutorado no Centre den Psychopathologie et Psychanalyse (Paris VII/2009-2010). Professora no Departamento e Mestrado em Psicologia da UFPR, Chefe da Unidade de Programas e Projetos da Pró Reitoria de Extensão e Cultura da UFPR (2014), Diretora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da UFPR (CNPq) Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.

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